Tríptico da Ultima Ceia

DIERICK BOUTS
Tríptico da Última Ceia
Igreja da Colegiada de S. Pedro
Confraria do Santíssimo Sacramento
LOVAINA






I. DIERICK BOUTS
Nascido em Harlem por volta de 1415, Dierick Bouts - de seu nome Theoderik Romboutsz - trabalhou entre 1440 e 1444 no grupo de Petrus Christus.

Em 1444, a rivalidade entre a nobreza e os artesãos degenerou numa luta sangrenta que provocou a fuga dos artistas: Petrus Christus para Bruges e Dierick Bouts para Bruxelas e Lovaina.

Em 1448 casa com uma jovem Lovaniense, Catherine van der Bruggen, de família muito abastada. Deste primeiro casamento nasceram quatro filhos, dois dos quais - Thierry le Jeune e, sobretudo, Albert - dirigiram em Lovaina um importante atelier de pintura. 

Quanto à formação artística de Dierick admite-se que tenha sido feita no atelier de Rogier van der Weyden, o grande mestre de Bruxelas.

Praticamente todas as obras da sua juventude revelam a técnica e estética do ilustre mestre Van der Weyden. 

A partir de 1457, estabeleceu-se em Lovaina, onde chegou a ser o pintor oficial da cidade em 1468. Após a morte da primeira mulher, em 1472, o mestre de Harlem celebra um segundo casamento com Elisabeth van Voshem. 

Apesar de ter deixado a sua terra natal muito cedo, as suas origens holandesas permaneceram visíveis em todas as suas obras: uma atmosfera fria, uma grande imobilidade das figuras representadas, cores surdas e paisagens severas.

De todos os artistas flamengos, Dierick Bouts assumiu de forma exemplar a concepção ascética da "Devotio Moderna", movimento místico expandido nos Países Baixos nos finais do século XIV por Gérard De Groote e pelos seus Irmãos e Irmãs da Vida Comum, estabelecidos em Deventer. Conforme a concepção da "Devotio Moderna", Dierick Bouts elimina toda a decoração supérflua para centrar-se no essencial da mensagem.

Na qualidade de pintor oficial de Lovaina foi encarregado de executar vários painéis destinados a decorar a sala da Justiça do "Hôtel de Ville" de Lovaina. São bem conhecidos os quadros do "Juízo Final" e o "Díptico da Justiça do Imperador Otão III". Do período lovaniense merece igualmente realce "O Martírio de Santo Erasmo". 




II. A ÚLTIMA CEIA
Mas a obra-prima incontestada de Dierick Bouts é o retábulo da "Última Ceia" que realizou para a Colegiada de S. Pedro, em Lovaina (1464-1470). Foi encomendado pela Confraria do Santíssimo Sacramento. Ao lado do artista estiveram dois doutores em teologia, professores da Universidade de Lovaina, que inspiraram todos os pormenores não só para o tema do painel central, e ainda para os dois volantes. Estes dois professores chamavam-se: Jean Vaerenacker e Égide Bailluwel. Eis porque esta obra apresenta tal perfeição iconográfica. Só dois especialistas podiam introduzir no tema da Última Ceia uma escolha tão feliz de quatro prefigurações do Antigo Testamento: "Encontro de Melquisedec e Abraão, o maná, Elias no deserto e a Páscoa judaica". 



Painel Central: A Última Ceia A cena desenvolve-se no interior de uma sala que apresenta uma arquitectura típica do século XIV que, na opinião de Émile Mâle, está relacionada com o teatro da época. Este fascínio de inspiração no teatro medieval teve uma aplicação unânime, quase servil, por todos os artistas flamengos. 

Outra marca do teatro é a justaposição de personagens reais e personagens imaginárias que não estão referidas no texto bíblico. O professor Valentin Denis, da Universidade de Lovaina, a quem devemos o melhor estudo sobre Dierick Bouts, identificou os diversos personagens que aparecem no painel central e nos volantes: no centro da composição do painel central, Érasme van Bauselle; Laurent van Winghe, no canto direito; os dois professores de teologia encarregados de aconselhar o pintor, Jean Vaerenacker e Égide Bailluwel, estão retratados nos dois apóstolos com gorros típicos da época. 

Cristo ocupa o eixo geométrico da composição no momento de tomar o pão com a mão esquerda e pronunciar a bênção com a direita (Mt 26, 26). Todos os que assistem à "Última Ceia" formam uma coroa à volta da hóstia e do cálice. De assinalar a posição dos apóstolos agrupados de três em três, isto é, seguindo um ritmo semelhante, ainda que não idêntico, àquele que utilizará mais tarde Leonardo da Vinci. Formam um quadrado com Cristo, Pedro e João na linha superior e Judas e Filipe na inferior. 

Sobre a mesa coberta com uma toalha branca, estão pequenos pães, copos de vidro e um grande prato de estanho. Dois pratos semelhantes estão colocados no volante abatido do postigo da cozinha. Possivelmente numa alusão à sagrada comunhão. Estes pratos eram muito comuns em toda a zona flamenga. É igualmente visível a semelhança de alguns objectos distribuídos pelo painel central e nos volantes: o copo de cerâmica branca sobre o apoio esquerdo da chaminé é igual ao que Elias recebeu do Anjo; a belíssima garrafa de vidro, colocada diante de João, é similar àquela que Melquisedec oferece a Abraão e àquela que serve para recolher o Maná. 





1. Encontro de Melquisedec com Abraão
A forma mais usual de associar Melquisedec à Eucaristia verifica-se no episódio do seu encontro com Abraão. Enquanto Abraão, pai dos crentes, regressa vitorioso da guerra contra o rei do Oriente, Melquisedec sai-lhe ao encontro abençoando-o e apresentando-lhe pão e vinho, as ofertas sacrificiais. Por sua vez, Abraão, figura do sacerdócio familiar, oferece ao Rei-Sacerdote a décima parte do espólio (Gn 14, 18). O Salmo 109 diz que o Messias seria Sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedec (Sl 109, 4). O paralelismo entre Melquisedec e Jesus foi amplamente desenvolvido na Carta aos Hebreus. Melquisedec, que oferece pão e vinho, é figura de Jesus Sacerdote que se oferece a si mesmo ao Pai sob as aparências de pão e vinho.






2. O Maná
O episódio da recolha do Maná é sobejamente conhecido, narrado no Êxodo 16, 13-36. A Bíblia situa a cena antes do romper da aurora, com a natureza envolta numa luz lunar. Este pormenor da luz foi captado de forma admirável por Dierick Bouts. Temos que esperar até aos finais do século XVII para encontrarmos na pintura flamenga num claro-escuro tão audaz e refinado. O Maná terá a sua correspondência no Novo Testamento com a multiplicação dos pães e dos peixes. Santo Agostinho acrescenta um comentário de carácter escatológico: somente comendo deste pão se pode alcançar a meta; somente comendo do novo maná, o pão da vida, se pode alcançar a vida eterna. 





3. Elias no Deserto
Esta cena de Elias presta-se a várias interpretações consoante os contextos em que for inserida. Santo Tomás de Aquino consagrou a conotação eucarística ao introduizr no ofício da Festa do Corpo de Deus a refeição do profeta Elias como prefiguração da Ceia do Senhor (In Festo Corporis Christi, responsório da terceira lição do I Nocturno). Efectivamente, a caminhada de Elias, durante quarenta dias e quarenta noites, com a força da comida e da bebida, constitui um símbolo evidente da atitude peregrina do cristão que vai à Eucaristia à procura de alimento e de força para o seu caminhar.





4. Páscoa Judaica
O ciclo das cenas do Antigo Testamento, prefigurativas da Eucaristia, conclui com a Páscoa Judaica, no volante direito da metade inferior. Num contexto similar, praticamente igual ao painel central, um conjunto de seis personagens, presididas pelo chefe de família, reunem-se à volta da mesa rectangular com os mesmos objectos da Última Ceia. Conforme o texto do Êxodo estão "de pé, com sandálias e cajado na mão" (Ex 12, 11). A Páscoa era uma festa de nómadas, cujos ritos fundamentais manifestam o carácter familiar: celebra-se à noite, quando tinham acabado as lides com os rebanhos, fora do santuário, sem sacerdote nem altar. A vítima escolhida do rebanho era assada no fogo, consumida, acompanhada com pão sem levedura e ervas do deserto; os comensais vestiam o uniforme próprio dos pastores.

A Páscoa Judaica era o centro da vida religiosa vetero-testamentária. Desde sempre, e em todos os contextos, foi considerada como a prefiguração mais evidente da "Última Ceia". 






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Ainda que natural de Harlem por nascimento e formação e, por conseguinte, fiel a certas constantes da arte holandesa, Dierick Bouts sempre foi considerado como um dos representantes mais autorizados da arte flamenga do século XV.






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