Baptismo de Cristo



:: FICHA DA OBRA ::

TEMA - Baptismo de Cristo
AUTOR - Piero Della Francesca
DATA - Entre 1440 e 1450
PALA - m 1,65 x 1,16
DESTINO - Igreja de Santo Egídio, Florença
ACTUALMENTE - Londres, National Gallery

INTERVENIENTES
- Cristo a ser Baptizado
- Espírito Santo em forma de pomba planando
- João Baptista que baptiza
- três Anjos
- os Pecadores: uma personagem que se despoja
- Elementos Naturais: Rio Jordão, céu, árvores


:: O AUTOR  -  PIERO DELLA FRANCESCA ::

Piero Della Francesca nasce na pequena cidade de Borgo San Sepolcro, da Toscânia, no seio de uma família de artistas e comerciantes, provavelmente entre 1415 e 1420. Uma cidade que vivia imersa nos ideais da arte medieval e, portanto, à margem do movimento renascentista que florescia noutras cidades do centro de Itália.

Isto explica que não saibamos quase nada da educação artística de Piero Della Francesca e do lugar em que se desenvolveu. Certamente não seria na sua pequena cidade natal, Borgo San Sepolcro, nem nas vizinhas cidades de Arezzo e Siena, marcadas fortemente pelo espírito medieval. 

A ausência de um ambiente artístico renovado levou Piero Della Francesca a buscá-lo fora do seu meio e foi até Florença. A presença de Piero em Florença à idade de, mais ou menos, vinte anos foi decisiva para a sua carreira artística. Em 1439, Piero trabalha em Florença com Domenico Veneziano nos frescos, perdidos, do coro da igreja de Santo Egídio. A sua carreira como pintor começava aqui e agora. 

Florença dos anos 30 do séc. XV é, na Itália desta época, o centro artístico mais vivo e moderno. Os fundadores da Renascença, Brunelleschi e Donatello, estavam em pleno auge; Leon Battista Alberti vivia em Florença e acabava de publicar, em 1436, o seu tratado "De pictura", o primeiro escrito teórico sobre a "arte nova", que inspirou certamente a arte de Piero Della Francesca. 

Para além da influência de Domenico Veneziano, Piero embebeu-se do espírito artístico de outros mestres que pontificavam na cidade de Florença: de Masaccio recebeu a majestosa plasticidade das suas figuras; o formalismo geométrico e as cores, de Paolo Ucello; sentiu-se fascinado pelos esmaltes harmoniosos, os céus transparentes, os cabelos de marfim do Beato Angelico. Possivelmente, chegou a conhecer os frescos do pintor português João Gonçalves, no claustro da igreja da Badia, em Florença. 

Piero desenvolveu a sua actividade artística fora de Florença: Arezzo, Borgo San Sepolcro, Rimini, Ferrara e, sobretudo, em Urbino. As primeiras obras certas são o "Políptico da Misericórdia", 1441, para Borgo San Sepolcro e o "Baptismo de Cristo", 1450, inicialmente numa das capelas da igreja de Santo Egídio e que agora se pode ver em Londres, na National Gallery. 

Obsessionado pela aplicação das leis da perspectiva, Piero escreverá um tratado de perspectiva, intitulado "De prospectiva pingendi", para demonstrar que a perspectiva não é um mero processo da acção pictórica, mas própria pintura.



:: Notas iconográficas ::

A composição mais antiga do Baptismo de Cristo é da segunda metade do séc. II e encontra-se nas Catacumbas de São Calixto. Podemos dizer que já no séc. II encontramos o esquema básico desta composição: Jesus na água, João curvado sobre Ele a baptizá-lo, o Espírito Santo esvoaçando sobre a cabeça de Jesus.

 (Catacumbas de São Calixto: abaixo, a reconstrução do fresco)



Na Idade Média, a cena do Baptismo de Jesus enriquece-se com novos personagens e novas particularidades: as ondas do rio Jordão cobrem o Senhor formando o "sino aquático"; a gota de óleo que cai da boca do Espírito Santo; os Anjos aumentaram de número; os Pecadores também vão aumentando cada vez mais.



("sino aquático" no Baptistério da igreja de Notre Dame em Liège - gravura de pormenor)



Piero Della Francesca prescinde da maior parte de elementos acessórios: o "Jordão personificado" (Baptistérios Neoniano e dos Arianos, em Ravena); o machado espetado no tronco da árvore de que fala o Precursor (Mt 3, 10), etc. e centra-se nos principais: Cristo, Pomba, João Baptista, Anjos, e introduz os Pecadores.





(Baptistério Neoniano; 

abaixo, Baptistério dos Arianos, com detalhe)




CRISTO
Representado em posição frontal, ocupa o eixo central do quadro, cuja linha vertical é continuada pela concha de João baptista e o Espírito Santo em forma de pomba. 

Na figura de Cristo sobressai toda a dignidade humana, ao mesmo tempo solene e impassível como um deus grego. Piero elimina o "sino aquático" medieval que cobria a nudez de Cristo até à cintura, substituindo-o por um "perizonium" transparente. 

A cabeça de Cristo, recortada sobre o céu azulado e isolada do perfil das colinas, é o centro focal do quadro. 

ESPÍRITO SANTO
Em forma de pomba, representada em belíssimo escorço (representação na perpendicular em relação ao espectador, para dar a sensação de "saída do quadro" ou "vinda"). 

Este é um dos melhores escorços que nos oferece o Renascimento e que, em nossa opinião, inspirou a representação do Espírito Santo das portas da basílica da Santíssima Trindade em Fátima.

JOÃO BAPTISTA
Fiel ao texto de S. Marcos 1, 6 João Baptista veste pêlos de camelo presos à cintura por uma correia de couro. Seguindo a tradição ocidental, utiliza uma concha para baptizar, enquanto no mundo bizantino o fazia com a mão. 

OS TRÊS ANJOS
Nesta obra, Piero Della Francesca apresenta-nos uma formulação iconográfica insólita. Em vez de segurarem as vestes de Cristo no momento de entrar no Jordão, como habitualmente, os três anjos não participam no rito e apenas assistem ao evento dando as mãos em sinal de concórdia.  

Este pormenor sempre foi interpretado como um símbolo da reconciliação das Igrejas do Ocidente e do Oriente, separadas a partir de 1054. Para esse efeito celebrou-se o 17º Concílio Ecuménico. Iniciou-se na cidade de Ferrara (1438) mas a deflagração da peste motivou que fosse transladado a Florença (1439) e concluído em Roma (1443).

Com cabeleiras doiradas, ornadas de grinaldas de flores, corpos marmóreos, como um grupo escultórico, inspirado nas terracotas de "Della Robia". 

OS PECADORES
Segundo o evangelho de Marcos 1, 5 Cristo recebeu o Baptismo misturado com a turba de pecadores. Eis porque já desde a Idade Média os pecadores fazem parte da iconografia do Baptismo do Senhor, uma prática que perdura no Renascimento. 

Os pecadores de Piero são os sábios orientais, vestidos de roupas garridas, que vieram participar no Concílio da Reconciliação entre o Ocidente e o Oriente.

Do conjunto dos pecadores, ganha particular carga simbólica o gesto daquele que se despoja da veste do pecado para se revestir da roupagem da Graça, uma imagem muito forte desde a igreja primitiva e usada pelo apóstolo Paulo com a dicotomia "despir-se do Homem Velho e ser revestido do Homem Novo" (Ef 4, 22-24; Col 3, 9-10).

ÁRVORES
É evidente a analogia entre o tronco da árvore central e o tronco nu de Cristo. A árvore vertical marmórea, longe de ser um mero elemento decorativo transforma-se, juntamente com o corpo de Cristo, no eixo principal de toda a composição, distribuindo-a num cálculo de pesos, não iguais, mas equivalentes: dum lado, os três Anjos, do lado oposto João baptista, os pagãos com os hábitos orientais e o baptizando que se despoja das vestes. 

Em relação à paisagem observa-se uma divisão entre a paisagem verde e viçosa, no lado de Cristo e uma paisagem de árvores secas do lado dos pecadores. Este sistema representativo, Piero voltará a utilizá-lo no tema da "Ressurreição de Cristo".




:: Nota FINAL ::

É em Florença que aparece, nos anos de 1430, uma nova forma de retábulo de altar, designado "Pala d'Altare", que correspondia às exigências de coerência espacial da pintura moderna tal como Alberti a descreveu no tratado "De pictura" (1435).

Piero Della Francesca executou, em 1450, para a igreja de Santo Egídio, em Florença, a "Pala do Baptismo" que pode considerar-se como uma síntese dos ideais do humanismo neo-platónico que circulava em Florença, com fortes implicações estéticas e religiosas.

Do ponto de vista estético, Piero define-se como um artista que se sente atraído por uma solução intelectualista: evita o acessório para concentrar-se na mensagem principal. Nesta obra, sente-se que é permeável à influência flamenga e, sobretudo, florentina: o espaço é uma paisagem aberta até ao fim do horizonte, cheio de luz clara e transparente, que se reflecte nas águas do rio, nos troncos das árvores e nos corpos. Tudo disposto segundo as leis da perspectiva ("De prospectiva pingendi").

Do ponto de vista religioso, esta Pala é o espelho da nova religiosidade florentina dos começos do séc. XV: Docta Pietas. Para trás ficaram os ideais da "Devotio Moderna", substituídos pela "Docta Pietas", sintetizados no conhecido axioma: "Pietatem cum litteris copulare" (casar a piedade com as letras).















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