Lei e Graça, Antiga e Nova Aliança





ALEGORIA DA LEI E DA GRAÇA

AUTOR - Lucas Cranach o Velho
DATA - 1529
TÉCNICA - Óleo sobre madeira
MEDIDA - 82 x 115 cm
LOCAL - Goutha, Sclossmuseum


Em 1517 - acabámos de celebrar os quinhentos anos - Martinho Lutero publicou as suas teses em Wittemberg. Dez anos depois, a Cristandade estava dividida em duas, divisão que marcou particularmente a Alemanha onde se enfrentavam príncipes católicos contra príncipes luteranos. 

A Corte de Wittemberg transformou-se no centro da Reforma Protestante: Lutero, Melanchton e Carlstad são os pregadores; a nobreza é a espada; Lucas Cranach será o pintor.

Antes de mais, Lucas Cranach o Velho surgirá como pintor de retratos: retratos de teólogos e de príncipes, encomendados de todas as cidades e cantões que adoptaram a "nova fé"; além disso, a nobreza protestante considerava ser de bom tom fazer-se retratar pelo amigo íntimo de Lutero. Chegaram-nos perto de trezentos retratos, dos quais cinquenta do Reformador Lutero.

Por outro lado, inspirando-se na teologia de Lutero, Cranach percorre a Sagrada Escritura à procura de personagens e relatos que se notabilizaram pela fé (Judite, Samaritana, Serpente de Bronze, Jesus e as Crianças, o Lava-Pés...). Empenhou-se por ilustrar os temas que Lutero considerava como fundamentais, em particular a doutrina da Justificação pela Fé, que expôs na Confissão de Augsburgo: "Nós não podemos obter a remissão dos pecados e da justiça diante de Deus pelos nossos próprios méritos nem pelas nossas obras, mas nós recebemos a remissão dos nossos pecados e tornamo-nos justos pela graça, por causa de Cristo, por meio da fé."

O quadro que hoje apresentamos, "Alegoria da Lei e da Graça" é a versão mais antiga (1529) deste tema desenvolvido por Lutero e Cranach. Para a realização desta obra Cranach serviu-se do capítulo 5 da Carta de S. Paulo aos Romanos.

Toda a composição assenta numa espécie de predela com textos alusivos ao "Julgamento", ao "Diabo e à Morte", a "Moisés" e "Profetas", ao "Homem", ao "Baptista", à "Morte" e ao "Cordeiro". Nesta pintura didáctica, destinada aos humildes, Cranach utiliza citações do Novo Testamento na língua vernácula do alemão para que pudessem ser compreendidas por todos. Pelo contrário, utilizará o latim só para públicos eruditos.

Ao centro, uma árvore, seca à esquerda e verdejante à direita, divide a composição, correspondendo à velha fórmula de Lutero: "A árvore da Morte é a Lei, a árvore da Vida é o Evangelho".

Do lado da Lei, no sentido ascendente, o Homem, nu, desorientado, de braços no ar, é empurrado por Satanás unido à Morte, com um aguilhão, para as chagas do Inferno.

Esta cena está enquadrada, em cima, por Adão e Eva na cena do Pecado Original e, ao lado, por Moisés e os Profetas mostrando as Tábuas da Lei, numa alusão ao texto de S. Paulo: "Desde Adão até Moisés reinou a Morte" (Rom 5, 14).

No plano recuado, no alinhamento do pecado de Adão e Eva, surge o episódio da "Serpente de Bronze": "Assim como Moisés ergueu a serpente no deserto, assim também é necessário que o Filho do Homem seja erguido ao alto, a fim de que todo o que nele crê tenha a vida eterna" (Jo 3, 14-15). Este episódio da Serpente de Bronze sempre se considerou uma prefiguração do Cristo crucificado. Neste caso, simboliza também a continuidade entre o Antigo e o Novo Testamento. 

As cenas do lado esquerdo concluem com o "Filho do Homem", sentado sobre o globo, mostrando a chaga do lado, com os seus atributos: a espada do seu poder temporal, da sua justiça, e o lírio do seu poder espiritual, da graça. É flanqueado à direita e esquerda pelo grupo da "Deesis", a Virgem Maria e João Baptista que, de joelhos sobre as nuvens, intercedem pelo perdão dos pecadores. 

Oposto ao lado da Lei, visualiza-se o lado do Evangelho. João Baptista conduz a Jesus Cristo o Homem nu, de mãos postas, regenerado pelo Baptismo. Jesus Cristo é apresentado na crucifixão e ressurreição, enquanto  que "Cordeiro de Deus", vencedor, com o estandarte da Vitória calca aos pés a Morte e o Diabo.

Jesus Cristo elevado numa Cruz Comissa (em forma de Tau); uma cruz verde, de acordo com a antífona "O Crux, viride lignum", para significar que a cruz salvadora não é um madeiro morto, mas um madeiro vivo, verde, a Árvore da Vida. Cristo coberto com um belíssimo "perizonium" esvoaçante, marca de Cranach nos seus crucificados. 

Sobre o túmulo, cuja pedra de entrada fora removida, o Cristo Ressuscitado plana com gesto vitorioso.

O jacto de sangue, que brota do lado de Cristo, evoca o antigo rito sacrifical celebrado por Moisés que "tomou o sangue e aspergiu com ele o povo dizendo: Eis o Sangue da Aliança que o Senhor concluiu convosco!" (Ex 24, 8). Da mesma maneira, o sangue de Jesus, mediador da Nova Aliança, derramado sobre os fiéis permite-lhes "receber a aspersão do sangue" (1Pe 1, 2).
















ALEGORIA DO ANTIGO E DO NOVO TESTAMENTO

AUTOR - Hans Holbein o Jovem
DATA - 1535
TÉCNICA - Óleo sobre madeira
MEDIDA - 50 x 60,5 cm
LOCAL - Edimburgo, National Gallery of Scotland


Hans Holbein o Jovem (1498-1543) é oriundo de uma família de artistas: seu pai, Hans o Velho, aberto à influência italiana, é um dos melhores pintores alemães do final do Gótico, e seu irmão Ambrósio é um excelente desenhador. 

Passa a sua infância em Augsburgo, onde foi aluno de seu pai, até que em 1515 chega a Basileia onde irá demonstrar o  seu talento como retratista. 

Foi introduzido pelo impressor Froben no mundo dos Humanistas e aí estabelece amizade com Erasmo, para quem realizará vários retratos, tal como Cranach em relação a Lutero.

Em 1521 conclui a sua obra-prima, "O Cristo Morto", modelo extraordinário do tratamento anatómico.

É difícil definir as suas convicções religiosas que deviam estar muito próximas das de Erasmo. Tendo sido convidado por diversas vezes a aderir à Reforma Protestante, preferiu trabalhar ao serviço da Igreja Católica. 

A partir de 1530 as encomendas religiosas diminuem fortemente, o que provocou a saída de Basileia. Partiu para Londres, aconselhado por Erasmo que o introduziu no mundo humanista e lhe permitiu o contacto com Thomas More. 

Depois da sua última partida para Londres, Holbein concluiu a "Alegoria do Antigo e do Novo Testamento".

Fiel ao gosto da Reforma Protestante pelas oposições entre o mal e o bem, Holbein contrapõe a Lei à Graça, a Queda à Redenção, a Morte à Vida.

Neste sentido, a sua obra deve ser comparada com a "Alegoria da Lei e da Graça" de Cranach. Nos dois quadros há pontos de convergência, mas também algumas diferenças na apresentação dos temas.

A primeira nota comum resulta da divisão do espaço em duas partes bem diferenciadas e separadas por uma árvore, verde do lado direito, seca do lado oposto. 

Sentado debaixo da árvore, o Homem (Homo) impotente, nu, chama pela sua libertação: "Que homem miserável sou eu, quem me há-de libertar deste corpo que pertence à morte?" (Rom 7, 2). Este homem que chama libertação é, ao mesmo tempo, reconfortado por Isaías e João Baptista.

No contexto da "Alegoria do Antigo e do Novo Testamento", Isaías assegura o ponto de contacto entre a Antiga e a Nova Aliança. 


Repare-se no braço estendido do profeta que gera uma oblíqua que vai, primeiramente, ao encontro da vertical da Cruz de Cristo (Justificatio Nostra) e prolonga-se depois até Maria, lá no alto, de joelhos e de mãos postas: "Por isso o Senhor vos dará um sinal. Olha a jovem está grávida e vai dar à luz um filho, e há-de pôr-lhe o nome de Emanuel" (Is 7, 14), (ECCE VIRGO CONCIPIET ET PARIET FILIUM). Maria não está só, pois na sua direcção projecta-se, num lado luminoso, o Emanuel, o Menino Jesus Salvador, como mostra a cruz que transporta sobre o ombro. 

Mais próximo do "Homo", no tempo e espaço, Holbein coloca João baptista, para quem olha fixamente com ar suplicante, enquanto o profeta o Cordeiro de Deus (AGNUS DEI): "Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo" (Jo 1, 29). 

É neste grupo de Isaías e João Baptista que se concentra o essencial da mensagem iconográfica desta "Alegoria do Antigo e do Novo Testamento", completada na parte superior pelas imagens de Moisés (LEX) e de Maria (GRATIA): "É que a Lei foi dada por Moisés, mas a Graça e a Verdade vieram-nos por Jesus Cristo" (Jo 1, 17).

No resto da composição, dividida em dois espaços semelhantes ao quadro de Cranach, Holbein distribui as figuras e episódios em perfeito paralelismo do mal e do bem: ao sepulcro da Morte (MORS), no canto inferior esquerdo, corresponde no canto oposto a figura de Cristo Ressuscitado (VICTORIA NOSTRA) no momento de sair vitorioso do sepulcro e pisar o esqueleto da Morte e o Demónio.

Num plano ligeiramente superior à cena do pecado de Adão e Eva (PECCATUM) tentados pela serpente com cabeça de mulher, corresponde no lado contrário o "Cordeiro de Deus (AGNUS DEI) que tira o pecado do mundo". Do grupo dos acompanhantes pode visualizar-se a figura do apóstolo Pedro (barba curta e arredondada) e do apóstolo João (imberbe).

Um pouco mais acima situa-se o episódio da Serpente de Bronze fixada sobre um poste, em forma de Tau (MYSTERIUM JUSTIFICATIONIS) em vigoroso paralelismo com a Cruz de Cristo (JUSTIFICATIO NOSTRA) do lado oposto: dois sinais simbólicos da Morte e da Vida.

Completa o conjunto iconográfico o episódio do anúncio aos pastores do nascimento do Salvador, repetido igualmente no quadro de Cranach.


Numa síntese mais concertada podemos verificar as 
concordâncias paralelas do Antigo e do Novo Testamento
realçadas nesta obra de Hans Holbein o Jovem





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